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Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar

Diante da gravidade dos casos de violência de gênero no Brasil, cabe perguntar se um crime não específico do universo militar deve ser julgado na Auditoria da Justiça Militar.

04/08/2021 às 14h03 Atualizada em 04/08/2021 às 14h07
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.org.br
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Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar

Em junho de 2019, uma jovem no município de Praia Grande, litoral do estado de São Paulo, acusou dois PMs de estuprá-la dentro da viatura em movimento, após pedir ajuda, de noite, e receber uma carona até o terminal rodoviário. O caso foi amplamente noticiado na grande mídia. A denúncia de estupro contou, além do relato da vítima, com provas como presença de sêmen, celular da jovem encontrado na viatura, desvio registrado de rota até o destino e imagens gravadas. 

Neste mês, foi divulgada a notícia de que a Justiça Militar de São Paulo absolveu os policiais envolvidos – mais precisamente, um deles foi absolvido e o outro, que recebera sentença por “libidinagem em ambiente militar”, teve o cumprimento da pena de 7 meses em regime aberto suspenso. O G1, site de notícias da Globo, apurou ainda que o Juiz de Direito da Justiça Militar (JM) responsável pela sentença é amigo íntimo do advogado de um dos soldados acusados e absolvidos. 

Dessa recente notícia podemos puxar muitos fios, mas um deles, tema aparentemente menor, nos parece merecer atenção. Trata-se dos julgamentos na Justiça Militar, e questões que emergem da estrutura desse ramo específico do Poder Judiciário. Não se pode, contudo, olvidar que se trata de um julgamento sobre um suposto crime de natureza sexual e que envolve questões de gênero – fato que atravessa qualquer discussão que possa ser levantada a partir da notícia relatada. 

Ser o objeto da denúncia a violência contra a mulher é crucial. Em 2019, ano do suposto crime, a taxa de estupros no Brasil (notificados) foi de 7,4 por 100 mil habitantes¹ e a projeção realizada pela pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública intitulada “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” foi de que, no mesmo ano, nove mulheres teriam sido agredidas por minuto no país. Sabe-se que a subnotificação da violência contra as mulheres é importante e que há muitas barreiras a serem transpostas para que o caso chegue à justiça. No caso ora em análise, se destaca ter havido o rompimento da barreira inicial que envolve a exposição da vítima, o fato de serem policiais com acesso a informações os acusados e haver provas da materialidade do crime – o que comumente não há em denúncias de estupro. 

De todo modo, o caso denota que muitas outras barreiras foram colocadas no caminho de um desfecho favorável à vítima. Tratando de casos de acusação por tráfico de drogas, a pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus² aborda o papel dos policiais na produção da verdade jurídica. Diz a autora que há um “campo de imunidade da narrativa policial, em que a versão dos agentes (...) permanece intocável ao longo do processo judicial, inviabilizando qualquer outra versão que a confronte”. Isso se deve não somente à fé pública dos agentes, mas também a outras crenças sobre o trabalho policial que dão suporte a suas narrativas, diz ela, como por exemplo, nas palavras de Marcelo Semer, Juiz de Direito³, o mito de que “o policial é sempre a mesma figura formal e abstrata, impoluta e diligente, cumpridora de suas funções protetivas, salvo robusta prova em contrário”. Ademais, elementos ocultos, como o machismo, estão presentes na construção dessa dita verdade jurídica.  

Assumindo que sim, há uma presença importante desse “campo de imunidade” da narrativa dos policiais nos processos judiciais – reforçado pelos números (baixíssimos) de condenações em casos de homicídios envolvendo intervenção policial, chamamos a atenção para o seguinte ponto: na Justiça Militar, por definição, há que haver uma cautela redobrada em relação às narrativas policiais. É preciso questionar o princípio da fé pública nos processos que correm nas Auditorias Militares e Conselhos de Justiça, uma vez que a competência da Justiça Militar estadual – nos entes federativos onde ela está instituída, é de “processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares”, nos termos do art. 125 da Constituição federal. 

Ora, se os militares são necessariamente os acusados na Justiça Militar, o relato da vítima e as provas materiais teriam que ter um peso no mínimo tão relevante quanto a palavra dos agentes públicos. Porém, como exposto na sentença do caso da Praia Grande, não teria havido violência ou ameaça conforme a fala dos policiais, e a presença de armas na cena seria constrangimento somente na exclusiva interpretação da vítima – o que levou à exclusão da hipótese de estupro, que depende do emprego de grave ameaça. 

Importa dizer que o magistrado reconheceu que houve relação sexual na viatura entre um dos policiais e a jovem, pois inicialmente condenou-o por libidinagem em ambiente militar. Aliás, o Código Penal Militar imputa a esse crime o máximo de 1 ano de detenção, enquanto o Código Penal (civil) estabelece para o ato libidinoso sem anuência a pena de 1 a 5 anos de reclusão (art. 215-A). Assim, é estarrecedor o peso dado às palavras dos PMs envolvidos, que desde o início estavam em uma situação aberrante (atos sexuais na viatura, em serviço, armados) em detrimento do depoimento de uma denunciante de um crime sobre violência sexual e de gênero, além das circunstâncias e elementos probantes. Ademais, o peso diferente dado aos crimes semelhantes nos dois códigos penais é notável.

O fato de, na Justiça Militar, haver justamente a presença de juízes militares nos Conselhos de Justiça (composição chamada de Escabinato) se deve ao princípio norteador de que somente militares são capazes de compreender o contexto e as eventuais peculiaridades dos crimes militares. Mas tal premissa funciona em um crime que envolve violência de gênero? No caso aqui discutido, temos inclusive a notícia da relação próxima entre advogado da parte acusada e o juiz, o que parece grave, porém talvez alinhado à premissa corporativista que sustenta a estrutura institucional da Justiça Militar, bem como o fato de ser uma estrutura enxuta, onde muitos se conhecem. 

Sabemos que o juiz das Auditorias Militares é um Juiz de Direito e que não são os militares que proferem a sentença nas Auditorias, apesar de participarem dos julgamentos, mas a ideia própria de uma Justiça Especial para os militares tem como pilar essa diferenciação em relação ao universo civil. Diante da gravidade e da intensidade dos casos de violência de gênero no Brasil, faz-se necessário se perguntar se cabe um crime como esse, dito impróprio, posto que não específico do universo militar, ser julgado na Auditoria da Justiça Militar. 

Impõe-se a necessidade de um esforço para uma definição mais precisa do que vem a ser o conceito de “crime militar” e de bem militar juridicamente tutelado. A jurisprudência das cortes superiores (STJ e STF), apesar de divergir, tende a decidir de forma ampla sobre o que é de competência da Justiça Militar, incluindo por exemplo todos aqueles militares “em atividade” e diferenciando essa condição do fato de estar “em serviço”; ou incluindo tudo que pode “vulnerar a regularidade das instituições militares”. Da mesma forma, o Código Penal Militar, quando define o que são crimes militares, em seu art. 9º, deixa espaço para uma compreensão mais vasta do que poderia ser desejável se se pretende defender a legitimidade de uma Justiça especial. Do contrário, corre-se o risco de um crime de estupro ser julgado como crime militar, e ainda ser absolvido.

¹ Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ed. 15. 2021, pg 105

² DE JESUS, Maria Gorete Marques. A verdade jurídica dos casos de acusação por tráfico de drogas: o campo de imunidade da narrativa policial na justiça criminal. ANPOCS, 2016.

³ SEMER, Marcelo. Sentenciando Tráfico: o Papel dos Juízes no Grande Encarceramento. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019, pp 315.

Mariana K. Kruchin - Consultora jurídica de organizações da sociedade civil. Associada e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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