Em junho de 2019, uma jovem no município de Praia Grande, litoral do estado de São Paulo, acusou dois PMs de estuprá-la dentro da viatura em movimento, após pedir ajuda, de noite, e receber uma carona até o terminal rodoviário. O caso foi amplamente noticiado na grande mídia. A denúncia de estupro contou, além do relato da vítima, com provas como presença de sêmen, celular da jovem encontrado na viatura, desvio registrado de rota até o destino e imagens gravadas.
Neste mês, foi divulgada a notícia de que a Justiça Militar de São Paulo absolveu os policiais envolvidos – mais precisamente, um deles foi absolvido e o outro, que recebera sentença por “libidinagem em ambiente militar”, teve o cumprimento da pena de 7 meses em regime aberto suspenso. O G1, site de notícias da Globo, apurou ainda que o Juiz de Direito da Justiça Militar (JM) responsável pela sentença é amigo íntimo do advogado de um dos soldados acusados e absolvidos.
Dessa recente notícia podemos puxar muitos fios, mas um deles, tema aparentemente menor, nos parece merecer atenção. Trata-se dos julgamentos na Justiça Militar, e questões que emergem da estrutura desse ramo específico do Poder Judiciário. Não se pode, contudo, olvidar que se trata de um julgamento sobre um suposto crime de natureza sexual e que envolve questões de gênero – fato que atravessa qualquer discussão que possa ser levantada a partir da notícia relatada.
Ser o objeto da denúncia a violência contra a mulher é crucial. Em 2019, ano do suposto crime, a taxa de estupros no Brasil (notificados) foi de 7,4 por 100 mil habitantes¹ e a projeção realizada pela pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública intitulada “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” foi de que, no mesmo ano, nove mulheres teriam sido agredidas por minuto no país. Sabe-se que a subnotificação da violência contra as mulheres é importante e que há muitas barreiras a serem transpostas para que o caso chegue à justiça. No caso ora em análise, se destaca ter havido o rompimento da barreira inicial que envolve a exposição da vítima, o fato de serem policiais com acesso a informações os acusados e haver provas da materialidade do crime – o que comumente não há em denúncias de estupro.
De todo modo, o caso denota que muitas outras barreiras foram colocadas no caminho de um desfecho favorável à vítima. Tratando de casos de acusação por tráfico de drogas, a pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus² aborda o papel dos policiais na produção da verdade jurídica. Diz a autora que há um “campo de imunidade da narrativa policial, em que a versão dos agentes (...) permanece intocável ao longo do processo judicial, inviabilizando qualquer outra versão que a confronte”. Isso se deve não somente à fé pública dos agentes, mas também a outras crenças sobre o trabalho policial que dão suporte a suas narrativas, diz ela, como por exemplo, nas palavras de Marcelo Semer, Juiz de Direito³, o mito de que “o policial é sempre a mesma figura formal e abstrata, impoluta e diligente, cumpridora de suas funções protetivas, salvo robusta prova em contrário”. Ademais, elementos ocultos, como o machismo, estão presentes na construção dessa dita verdade jurídica.
Assumindo que sim, há uma presença importante desse “campo de imunidade” da narrativa dos policiais nos processos judiciais – reforçado pelos números (baixíssimos) de condenações em casos de homicídios envolvendo intervenção policial, chamamos a atenção para o seguinte ponto: na Justiça Militar, por definição, há que haver uma cautela redobrada em relação às narrativas policiais. É preciso questionar o princípio da fé pública nos processos que correm nas Auditorias Militares e Conselhos de Justiça, uma vez que a competência da Justiça Militar estadual – nos entes federativos onde ela está instituída, é de “processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares”, nos termos do art. 125 da Constituição federal.
Ora, se os militares são necessariamente os acusados na Justiça Militar, o relato da vítima e as provas materiais teriam que ter um peso no mínimo tão relevante quanto a palavra dos agentes públicos. Porém, como exposto na sentença do caso da Praia Grande, não teria havido violência ou ameaça conforme a fala dos policiais, e a presença de armas na cena seria constrangimento somente na exclusiva interpretação da vítima – o que levou à exclusão da hipótese de estupro, que depende do emprego de grave ameaça.
Importa dizer que o magistrado reconheceu que houve relação sexual na viatura entre um dos policiais e a jovem, pois inicialmente condenou-o por libidinagem em ambiente militar. Aliás, o Código Penal Militar imputa a esse crime o máximo de 1 ano de detenção, enquanto o Código Penal (civil) estabelece para o ato libidinoso sem anuência a pena de 1 a 5 anos de reclusão (art. 215-A). Assim, é estarrecedor o peso dado às palavras dos PMs envolvidos, que desde o início estavam em uma situação aberrante (atos sexuais na viatura, em serviço, armados) em detrimento do depoimento de uma denunciante de um crime sobre violência sexual e de gênero, além das circunstâncias e elementos probantes. Ademais, o peso diferente dado aos crimes semelhantes nos dois códigos penais é notável.
O fato de, na Justiça Militar, haver justamente a presença de juízes militares nos Conselhos de Justiça (composição chamada de Escabinato) se deve ao princípio norteador de que somente militares são capazes de compreender o contexto e as eventuais peculiaridades dos crimes militares. Mas tal premissa funciona em um crime que envolve violência de gênero? No caso aqui discutido, temos inclusive a notícia da relação próxima entre advogado da parte acusada e o juiz, o que parece grave, porém talvez alinhado à premissa corporativista que sustenta a estrutura institucional da Justiça Militar, bem como o fato de ser uma estrutura enxuta, onde muitos se conhecem.
Sabemos que o juiz das Auditorias Militares é um Juiz de Direito e que não são os militares que proferem a sentença nas Auditorias, apesar de participarem dos julgamentos, mas a ideia própria de uma Justiça Especial para os militares tem como pilar essa diferenciação em relação ao universo civil. Diante da gravidade e da intensidade dos casos de violência de gênero no Brasil, faz-se necessário se perguntar se cabe um crime como esse, dito impróprio, posto que não específico do universo militar, ser julgado na Auditoria da Justiça Militar.
Impõe-se a necessidade de um esforço para uma definição mais precisa do que vem a ser o conceito de “crime militar” e de bem militar juridicamente tutelado. A jurisprudência das cortes superiores (STJ e STF), apesar de divergir, tende a decidir de forma ampla sobre o que é de competência da Justiça Militar, incluindo por exemplo todos aqueles militares “em atividade” e diferenciando essa condição do fato de estar “em serviço”; ou incluindo tudo que pode “vulnerar a regularidade das instituições militares”. Da mesma forma, o Código Penal Militar, quando define o que são crimes militares, em seu art. 9º, deixa espaço para uma compreensão mais vasta do que poderia ser desejável se se pretende defender a legitimidade de uma Justiça especial. Do contrário, corre-se o risco de um crime de estupro ser julgado como crime militar, e ainda ser absolvido.
¹ Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ed. 15. 2021, pg 105
² DE JESUS, Maria Gorete Marques. A verdade jurídica dos casos de acusação por tráfico de drogas: o campo de imunidade da narrativa policial na justiça criminal. ANPOCS, 2016.
³ SEMER, Marcelo. Sentenciando Tráfico: o Papel dos Juízes no Grande Encarceramento. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019, pp 315.
Mariana K. Kruchin - Consultora jurídica de organizações da sociedade civil. Associada e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.